tecedor de ideias

Zemog tem uma relação especial com o mundo à sua volta, um mundo igual àquele que nos rodeia - mas que não vemos. Quando seu olhar cai sobre um pedaço de papel, uma fita, uma tampinha, um prego; sobre qualquer objeto -  insignificante ou luxuoso, elegante ou kitsch - este se entrega, se revela, se transforma em múltiplas plenitudes.

Zemog tem, para mim, um parentesco artístico muito próximo com Kurt Schwitters e suas assemblages, suas montagens, sua casa / obra. Schwitters inventou uma palavra para definir seu trabalho: Merz - “uma combinação, para fins artísticos, de qualquer material concebível, e, tecnicamente, o princípio de igualdade dos materiais. Uma roda, uma rede, um arame, um fio de algodão têm direitos iguais aos da pintura”.

Naturalmente, naquele início do século XX, a pintura ainda era considerada a grande arte. Já a produção contemporânea de hoje esbarra com freqüência na dificuldade da sua contextualização. O mundo moderno oferece tantas e tão múltiplas possibilidades, que sua apreensão e modificação, que constitui o objeto final da arte, envereda por caminhos que se entrecruzam a uma velocidade cada vez maior. As artes se contaminam e tornam obsoleta a sua divisão em categorias.

Schwitters expunha com os contestadores dadaístas, mas sua atitude inteiramente independente, era vista por seus pares com desconfiança. Zemog também é alheio aos grupos vigentes. Suas estratégias de apropriação, acumulação e elaboração revelam segredos e deixam entrever suas raízes mineiras. Do seu trabalho afloram a riqueza e a sensualidade; perpassadas de uma certa nostalgia e humor.

Zemog entrelaça cores a finas ironias e costura texturas cintilantes a provocações sutis. É um artista barroco e contemporâneo, um poeta, que tece infinitamente suas idéias.

Por Denise Mattar | curadora


Arqui-arte ou Anti-arte?

Artista ou designer? Pouco importa! Visitar o atelier de Zemog em Santa Tereza, no Rio de Janeiro, é como viajar através das várias correntes da História da Arte. É seu olhar, sua visão, que com sutileza e inteligência mostram o cotidiano, que transformam o banal em novos objetos ou em obras de arte. Vale lembrar que sua paleta de intervenções está cheia de tampas de garrafa, fitinhas protetoras do Bonfim, talões do jogo do bicho, suportes para dependurar pratos na parede, bacias de ferro ou ainda de simples espelhos...

Será que podemos considerar Zemog um “arqui-artista” que transforma, por sua simples escolha, qualquer objeto em obra de arte? Era a visão de André Breton, típica do Surrealismo. Até os anos 1950, essa alternativa entre “anti-arte” destruidora e “arqui-arte”, através da qual afirma-se a onipotência do artista, dominou os debates da época. E parece que isso ainda é muito atual. Assim, me pergunto se podemos considerar que Zemog é, ao mesmo tempo, anti-arte e arqui-arte.

Ready-made

De maneira extremamente geral, podemos definir os ready-mades como objetos manufaturados, dos quais o artista se apropria tais quais, tirando deles sua função utilitária. Ele às vezes acrescenta um título, uma data, eventualmente uma inscrição, e a manipulação que faz sobre eles é geralmente muito sumária.

“Pode-se fazer obras que não sejam “de arte”? perguntava Marcel Duchamp. Vale lembrar que, no campo das artes, o termo inglês ready-made foi usado por ele pela primeira vez em 1916. Naquele ano, Duchamp fixou uma roda de bicicleta em cima de um banquinho de cozinha. Antes disso, em 1914, em Paris, ele havia comprado um porta-garrafas que ele simplesmente assinou. Em 1929, em seu Dicionário abreviado do surrealismo [foi publicado com esse título em português ou devo deixar o título original em francês? Dictionnaire abrégé du Surréalisme], André Breton foi o primeiro a dar uma definição do ready-made: “Objeto de uso comum promovido à dignidade de objeto de arte por simples escolha do artista”. Zemog maneja o ready-made com talento, desviando e requalificando os vários objetos do dia-a-dia que usa em suas obras. Uma bacia vira espelho, suportes de pratos tornam-se grandes insetos misteriosos...

Reciclagem poética do real

A reciclagem tornou-se um modo de vida comum, porque o lixo faz parte de nosso dia-a-dia. Quando a arte moderna ocidental começou a tomar conta do lixo nos primórdios do século XX, na maioria das vezes foi por suas propriedades estéticas e conceituais, enquanto a arte contemporânea usa o lixo principalmente para fazer crítica e política. De Kurt Schwitters a Wim Delvoye, passando pela Arte Povera ou pelo Novo Realismo, os artistas convocaram os mais variados registros através do lixo da sociedade. Zemog sugere que a arte surge de acordo com situações peculiares e que os artistas só podem se beneficiar do que seu ambiente lhes envia. O artista recorre preferencialmente a objetos encontrados já determinados como matéria prima, e não a artigos manufaturados novos. Alguns objetos ele recupera nos lixos da sociedade, que encontra a seu alcance. Ele os coleta e transforma, como no caso das tampas de garrafa que ele gosta de usar. É assim que ele faz da recuperação, paralelamente a seus ready-made, o pivô de seu processo criativo. Zemog faz a proposta de anexar formas derrisórias quase sempre desprezadas e que, uma vez integradas a sua obra, revertem a ordem do consumo e da produção. Ele coloca novamente em circulação objetos que foram jogados fora, aos quais atribui novo valor, retomando um processo caro aos Novos Realistas: a “reciclagem poética do real”. Reencarnadas, por exemplo, suas tampas de garrafa vivem uma nova história. Elas estavam condenadas a desaparecer, pois contrariamente aos artigos usados, elas haviam perdido irremediavelmente sua funcionalidade, portanto sua razão de ser. Não só a nova função destes detritos revela uma dimensão – artística – ignorada pelo uso inicial do objeto, mas sua mutação os sublima. Zemog sai do registro da bricolagem ou do comentário anedótico sobre a sociedade para criar formas cuja magnificência é exaltada.

Minimalismo

Mas podemos também considerar uma forma de minimalismo da obra de Zemog. Lembremos que o minimalismo é uma corrente da arte contemporânea, surgida no início dos anos 1960 nos Estados Unidos, em reação ao lirismo pictural do Expressionismo abstrato e em oposição à tendência figurativa e irônica da Pop Art. Ele toma para si a máxima de um dos grandes representantes do Bauhaus, Mies Van der Rohe: “less is more”.

A obra de Zemog recusa a interpretação na arte. Ele despersonaliza a obra de arte para acabar com as figuras de gênios torturados de ego superdimensionado.A simplicidade é primordial e não há qualquer representação subjetiva. Sua obra é geralmente isenta de quaisquer simbolismos e só busca jogar com as formas e cores, evitando a emoção no sentido de literal do termo: uma arte despojada de qualquer sentimento. Zemog usa materiais simples e muitas vezes em seu estado bruto, e formas depuradas. A escolha dos volumes deve ser apreendida imediatamente pelo que são. As cores, os materiais individuais permitem produzir objetos que não têm nenhuma história emocional, de modo que o conteúdo da escultura nada mais é do que a própria escultura, é uma representação mínima, pois se limita ao essencial.

Poesia concreta

O trabalho de Zemog reserva ainda outras surpresas. Com seu olhar sobre as fitinhas da igreja do Bonfim ou sobre os talões do jogo do bicho, ele os transforma em obras que evocam a poesia concreta, essa forma de poesia experimental que não lança mão nem da sintaxe nem do ritmo, mas considera o poema como objeto sensível, independentemente do sentido. Zemog brinca com a disposição espacial das palavras, para expressar sentido. Ele repensa não somente as mensagens do Bonfim e os números do jogo do bicho, mas seus suportes. De acordo com a forma das letras e a disposição das palavras e dos números, o ritmo de (re)leitura difere do ritmo de leitura linear habitual.

Essa nova poesia encarnada por Zemog pretende ser um objeto a ser visto, imediato, que brinca com a materialidade visual e sonora da linguagem, para se liberar de sua função referencial.

O ponto essencial da poesia concreta é a relação com a linguagem, o que faz com que esse movimento esteja diretamente ligado à arte conceitual. A maioria dos artistas engajados neste movimento fez parte do movimento fluxus e praticou a arte conceitual nos anos 60. Os dadaístas usaram demais a linguagem para remodelar a arte tradicional, de modo a afetar o significado das palavras na urgência de mudar a vida: trazer a linguagem de volta a sua essência. 

Anti-arte, Ready-made, reciclagem poética do real, minimalismo e poesia concreta, todos são ângulos artísticos que Zemog nos convida a visitar com ele quando empurramos sua porta de Santa Teresa.

Por Marc Pottier | curador